Durante missão internacional na África e Oriente Médio, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva usou uma abordagem multipolar e buscou cultivar as relações comerciais entre os países, indicando, por exemplo, a utilização de uma moeda alternativa ao Dólar nas transações comerciais. Danilo Porfírio, professor de Relações Internacionais do Centro Universitário de Brasília (CEUB), avalia essa estratégia política, destacando que uma visão simplista não resolverá a situação de Israel e Palestina, e comenta a necessidade de reforma estrutural na ONU.
Confira a entrevista, na íntegra:
Como analisa o discurso do presidente Lula na sessão do Conselho de Representantes da Liga dos Estados Árabes no Egito, especialmente considerando seu histórico de relações diplomáticas com o mundo árabe?
DP: Lula manteve um alinhamento político e ideológico já conhecido nos seus outros governos, especialmente em relação aos países árabes. Há interesses econômicos claros com os países árabes, especialmente no fornecimento de commodities vegetais e na exportação de carne, o que representa um espaço potencialmente interessante para o agronegócio brasileiro. No aspecto ideológico, há uma simpatia pela causa palestina por parte do governo brasileiro e os árabes, mesmo que de forma contraditória, estão alinhados com essa questão. Portanto, o discurso crítico de Lula em relação a Israel pode gerar simpatia por parte da comunidade árabe em relação à sua pessoa e ao seu governo.
Como enxerga o papel do Brasil como mediador ou facilitador de discussões sobre a guerra no Oriente Médio, dada a visita do presidente Lula ao Egito e suas possíveis discussões sobre o tema?
DP: Na teoria, nossa diplomacia está preparada para o processo de composição e mediação de conflitos. Na teoria, as comunidade palestina, árabe e a israelense convivem de forma exemplarmente pacífica no Brasil, que aspira o papel de protagonista no processo de mediação e composição de conflitos no Oriente Médio, especialmente em relação a Hamas e Israel. Mas na prática, na Realpolitik, esse projeto está longe de se concretizar. Primeiramente, as tensões entre o governo brasileiro e Israel dificultam a possibilidade de o Brasil assumir esse papel de protagonismo.
Além disso, historicamente, questões dessa natureza são geralmente resolvidas por grandes potências, como a Rússia, quando se trata de interesses árabes ou relacionados aos países de maioria islâmica, e os Estados Unidos e a Europa, quando se trata de Israel. Já vimos exemplos no passado, o Brasil tentando mediar questões, como o tratado nuclear no Irã, quando os americanos e europeus simplesmente ignoraram nossas iniciativas. Portanto, há uma diferença significativa entre as aspirações do Brasil e a realidade do mundo político.
Qual impacto acredita que a assinatura do acordo na área de bioenergia entre Brasil e Egito poderá ter nas relações bilaterais entre os dois países e na cooperação em questões ambientais e energéticas?
DP: O Brasil tem uma trajetória histórica de avanços em recursos bioenergéticos, como o álcool, o óleo de mamona e outras fontes renováveis. Esse acordo também abre oportunidades de mercado com o Egito, um país populoso e economicamente relevante entre as nações africanas. Portanto, representa uma chance de aproveitar o desenvolvimento tecnológico brasileiro para impulsionar essas relações comerciais.
O presidente brasileiro enfatizou a necessidade de um cessar-fogo na Faixa de Gaza e criticou a resposta da ONU ao conflito. Como avalia o papel das organizações internacionais, como a ONU, na resolução de conflitos regionais como o conflito israelo-palestino?
DP: A ONU precisa ser reformada em suas estruturas e papéis. O modelo atual, baseado na Segunda Guerra Mundial, não reflete mais a realidade global. O Conselho de Segurança, especialmente devido aos poderes de veto dos membros permanentes, muitas vezes torna a organização impotente diante dos interesses das grandes potências. Sua atuação em questões como o conflito entre Palestina e Israel é frequentemente prejudicada pelos vetos de membros como Rússia e Estados Unidos.
As agências e braços da ONU também devem ser revisados em termos de responsabilidades, incluindo a seleção e o desempenho de seus agentes. As acusações de envolvimento com grupos como o Hamas por parte de membros da organização, ligados à agência de refugiados, são preocupantes e devem ser abordadas. A ONU deve manter seu papel de promover a paz e assistência, não de alimentar conflitos.
Lula defendeu o reconhecimento do Estado palestino e seu ingresso na ONU como membro pleno. Quais são os possíveis impactos políticos e diplomáticos desse reconhecimento tanto na região do Oriente Médio quanto no cenário internacional?
DP: Na teoria, a criação de um Estado palestino soberano poderia contribuir para a pacificação do Oriente Médio. Vale ressaltar que a consolidação do acordo entre os países do Golfo, como a Arábia Saudita, e Israel, representada pelo Pacto Abraâmico, encontrou obstáculos devido ao recente conflito entre Hamas e Israel. A resolução da questão palestina não apenas pacificaria a região, mas retiraria justificativas para a violência perpetrada por movimentos insurgentes. Mas parece que o Estado israelense não tem interesse na criação de um Estado palestino e as grandes potências, como EUA, Europa, Rússia e China, não demonstram comprometimento sólido com a causa. Portanto, a situação está longe de ser resolvida.
Quanto à questão de o Brasil ingressar no Conselho Permanente da ONU, vemos apenas promessas vazias que nunca se concretizam. Ao mencionar o Brasil, é importante considerar a necessidade de uma representação mais plural na ONU. Isso não se resume apenas à sua entrada no Conselho de Segurança, mas também a outros países com status semelhante ou superior, como Japão, Alemanha, Argentina, México, Egito e África do Sul. Acredito que a atual situação da ONU parece estar estagnada.
Lula mencionou o aumento significativo do comércio entre o Brasil e os países árabes. Como essa relação comercial pode influenciar as dinâmicas políticas e diplomáticas entre as nações envolvidas?
DP: Aproximações têm uma dimensão regional entre o Brasil e esses países, intensificando as boas relações comerciais. Isso pode ter uma dimensão política na construção de formas de decisão ou posicionamento unânime, mas especificamente dentro de um contexto regional, e não global. Não estamos presenciando a formação de um grande bloco capaz de rivalizar com as grandes potências, seja em termos militares ou econômicos, e muito menos de se posicionar em igualdade com elas.
Qual é a relevância da participação dos países da Liga Árabe na COP-30 sobre mudança do clima, que será sediada pelo Brasil em 2025, especialmente considerando os desafios ambientais globais?
DP: As questões ambientais estão intrinsecamente ligadas à exclusão. Os países árabes, em conjunto com outras nações emergentes, têm o potencial de exigir uma corresponsabilidade efetiva dos países desenvolvidos em relação à preservação ambiental. Não há desafio mais sério para o meio ambiente do que a pobreza, uma vez que a poluição e a degradação ambiental estão diretamente ligadas a ela.
Assim, cabe aos blocos desenvolvidos assumirem uma responsabilidade genuína, algo que, na prática, raramente ocorre. Portanto, o papel dos países da Liga Árabe é fortalecer o coro dos países subdesenvolvidos, emergentes e do terceiro mundo. Eles devem trabalhar na perspectiva de promover o desenvolvimento em escala global, visando estabelecer sociedades e economias sustentáveis em todo o mundo.
Como interpreta a referência do Presidente Lula à Iniciativa Árabe pela Paz durante seu discurso, e quais são as perspectivas para a resolução do conflito entre Israel e Palestina, considerando as recentes ações e declarações dos envolvidos?
DP: A simpatia de Lula pela ação dos países árabes parece ter um cunho ideológico. É importante buscar uma composição que promova a cessação das hostilidades e, idealmente, a paz. No entanto, os países árabes não podem apenas exigir uma postura de Israel em relação à situação humanitária da Palestina sem pressionar o Hamas e outros grupos políticos a respeitar e reconhecer Israel.
Isso inclui condicionar o reconhecimento e o respeito à autoridade do povo do Estado israelense à criação de um estado palestino, à autonomia e à independência do povo palestino. Não pode haver apenas uma postura de fazer de conta que não se vê nem se ouve. Portanto, é preciso reconhecer que, apesar de falar em mediação e composição, o governo Lula parece ter uma visão simplista sobre a situação de Israel e Palestina. Esse ponto merece reflexão.